Quando pensamos em cerveja, eu aposto que o que vem na cabeça da maioria das pessoas é a receita base para quase todos os estilos: água, malte, lúpulo e leveduras. Mesmo com diversas variações, esse básico é tido como garantido pela maioria. Mas e se eu disser que nem sempre foi assim? E que antes disso, as cervejas não usavam… lúpulo? Poisé marujos, essa linda flor nem sempre foi conhecida e usada! Antes disso, usavam um misto chamado de Gruit!
O Que Exatamente é Gruit
Recentemente no blog falamos sobre as cervejas Lambic, que são consideradas as receitas mais antigas do mundo atualmente por utilizar a fermentação natural. Mas existe outro fator que nós não comentamos sobre as primeiras cervejas, além da fermentação natural: o uso do chamado Gruit no lugar do lúpulo nas receitas, uma tradição super antiga.
O Gruit era usado porque, como foi dito na introdução, nós não usamos o lúpulo desde sempre. Na verdade, ele só foi se popularizar por volta do séc. XIV que seu uso foi amplamente popularizado. Portanto, sem o conhecimento dessa flor, as mestras cervejeiras precisavam balancear o dulçor de outras formas. É aí que entra o Gruit!
Mas antes de continuarmos, notou que eu escrevi “mestras” e não “mestres”? Poisé marujos, isso não foi um erro! O fato é que desde sua origem, a cerveja está completamente associada às mulheres! A produção de cerveja por muito tempo foi uma atividade exclusivamente feminina, portanto, respeite as mina! Elas foram e ainda são super importantes para a história da cerveja!
Agora que você sabe pra que é usado o Gruit, vamos falar sobre o que exatamente é o Gruit (finalmente!). Com o tempo procurando insumos para balancear o malte, usando diversas misturas de ervas, uma mistura “padrão” começou a se consolidar. Apesar de ter suas variações de acordo com a região, o misto normalmente constava com: mírica, aspérula, alecrim, lavanda, milefólio, zimbro, artemísia, aquileia, erva-de-São-João, marroio, gengibre e urze. Além dessas, dizem que mais de 40 ervas eram usadas em conjunto para formar o sabor específico!
A ideia era justamente misturar diversas ervas para que não fosse possível identificar o sabor individual de nenhuma delas, mas sim que todos tivessem em harmonia. E como descobriram o que funcionava bem? Ora, pelo método mais antigo do mundo: testando! Desde os primórdios da produção da cerveja, foram testados os mais diversos insumos para produzir uma bebida com sabores diferentes. As vezes dava certo, as vezes não, e com o tempo fomos descobrindo o que funciona!
Outra característica interessante das Gruit Beers é que dependendo das ervas utilizadas, elas podiam ter características afrodisíacas, alucinógenas e narcóticas. Esses são traços bem diferentes do que estamos acostumados nas cervejas de hoje em dia, né?
Gruit X Lúpulos
Agora que sabemos como as cervejas eram utilizando o Griut, o que exatamente fez com que o lúpulo tomasse seu lugar? Primeiramente, vamos ver as diferenças entre as cervejas com lúpulos e com Gruit.
A primeira diferença bem óbvia é o sabor. O lúpulo balanceia bem o dulçor do malte por conta do seu amargor, o que não é tão comum nas Gruit Beers. Na verdade, por não estarem acostumados com uma bebida tão amarga, no início da utilização do lúpulo esse foi um dos fatores que mais causaram estranhamento ao público, que inicialmente não gostou muito da característica.
Mas o segundo fator foi um dos mais importantes para a adoção do uso do lúpulo: a sua característica conservante. Isso já é conhecido hoje em dia, mas na época quando descobriram, aos poucos isso se tornou uma revolução no mundo cervejeiro, pois as bebidas com lúpulos duravam bem mais que as de Gruit.
Algumas vantagens do lúpulo sobre o Gruit, são: o lúpulo era mais barato, o que também barateou o preço final da bebida, não era monopolizado pela igreja, e por último, era mais “seguro” por não causar nenhum efeito afrodisíaco, narcótico ou alucinógeno.
Mas a questão é que o verdadeiro motivo da adoção do lúpulo por praticamente toda a comunidade cervejeira não tem a ver só com suas propriedades, mas sim com…
Política e Religião
Poisé marujos, não conseguimos escapar desse tema nem aqui. Mas vamos entender tudo desde o começo. Tudo se inicia com o reinado de uma figura bem importante para a história: Rei Carlos Magno, o Rei dos Francos, dos Lombardos e Imperador Romano até o início do século IX. Carlos Magno via a cerveja como um elemento importante para a sociedade e seu império. Por isso quando criou seu conjunto de regras para regulamentar e organizar a infraestrutura básica de uma vila, ele considerou a produção de cerveja em seus planos.
Para isso, ele estipulou que toda vila deveria ter ao menos uma cervejaria. Mas é claro, o rei não fez isso de graça. Ao mesmo tempo, Carlos Magno causou o monopólio do fornecimento de Gruit pelos monges da igreja católica, quando determinou que apenas eles tinham a licença oficial para distribuí-lo. Além disso, ele também colocou taxas sobre o Gruit, transformando-o em mais uma fonte de renda para o reino.
Quanto ao lúpulo, ele já era usado desde essa época mas por poucas produções. Foi apenas em 1150, no livro Physica, o lúpulo é citado como um ótimo conservante e relaxante. Descrito pela Hildergada de Bigen, uma monja alemã! Olha as mulheres aparecendo novamente, afirmando sua importância vital na história cervejeira! Inclusive, em 2012 Hildergarda foi até santificada.
Finalmente, a adoção do lúpulo!
Após a disseminação desse conhecimento, vieram os eventos que realmente alavancaram a popularidade do lúpulo, se é que podemos falar assim. O que houve foi um grande descontentamento do governo com a Igreja Católica, o que fez com que o seu monopólio incomodasse o governo. Poranto, no ano de 1268 o rei Luis IX da França determinou que a cerveja deveria ser feita apenas com lúpulo e malte, numa tentativa de tirar o monopólio do Gruit da mão dos católicos. Assim, diminuindo uma fonte de renda também significava reduzir o poder e a influência da Igreja.
Com o passar do tempo, mais e mais leis foram sendo criadas através da Europa para que o lúpulo fosse utilizado no lugar do Gruit, até chegarmos no que é provavelmente a lei mais famosa de todas elas: A Lei da Pureza Alemã. Como muitos já sabem, esta lei estipula que na Alemanha, para uma cerveja ser considerada de qualidade, ela só pode conter os seguintes ingredientes: água, malte de cevada e lúpulos (na época não se sabia exatamente da existência das leveduras, a fermentação era espontânea).
Com a reforma protestante, um dos argumentos utilizados para implantar as leis contra o Gruit tinham a ver com suas propriedades afrodisíacas, narcóticas e alucinógenas. Por mais que para alguns esses sejam pontos positivos, essas características não eram aprovadas pelos evangélicos. Logo, o governo apoiava esse discurso devido ao já citado descontentamento com a Igreja Católica.
Cervejas Gruit Atualmente
Por fazer parte da história cervejeira, muitas cervejarias estão revivendo o método antigo de se fazer cervejas. Por isso temos visto surgindo alguns rótulos aqui e ali, o que torna possível para qualquer um provar essa receita antiga! Temos rótulos brasileiros inclusive, como a Magrela, cerveja sazonal da Cervejaria Nacional.
Um fato interessante é que pelas definições atuais de cerveja, não podemos chamar as Gruit Beers de cerveja, já que elas não levam lúpulos na receita. Por conta disso, para ainda serem comercializadas como cerveja, algumas receitas adicionam 1g de lúpulo ao mosto. Não faz diferença nenhuma, mas já é o suficiente para ser “oficialmente” cerveja hahaha!